Que banda larga queremos?

tipo: Documentos
publicado em: 26 de maio de 2010
por: Carlos A. Afonso
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Que banda larga queremos?

Carlos A. Afonso* - 26 de maio de 2010
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2009

O Governo Federal do Brasil tem discutido com representantes de vários setores o chamado Plano (ou Programa) Nacional de Banda Larga (PNBL), em vias de ser formalmente aprovado como programa prioritário de governo. Iniciativas similares têm sido discutidas ou adotadas por diversos governos (África do Sul, Austrália, Canadá, Coréia do Sul, Espanha, Estados Unidos, Finlândia e outros). Em praticamente todos os casos, as ações contemplam forte presença do Estado como agente catalisador e até mesmo operador (como é o caso da Austrália) de componentes estratégicos dos sistemas participantes.

Estudo recente do Banco Mundial mostra que um aumento de 10% no número de conexões de banda larga em países emergentes induz um crescimento adicional de mais de 1,3% no PIB. Se a estimativa do Banco Mundial for confiável, um programa estratégico incisivo de universalização da banda larga pode gerar um crescimento incremental de cerca de 20% no PIB brasileiro (por exemplo, entre 6% e 7%, em vez dos 5% projetados para 2010). Essa tentativa de quantificar o impacto, tanto do Banco Mundial como da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), revela que esse componente da estratégia de desenvolvimento econômico não pode ser menosprezado.

Tanto o plano do governo sulafricano como as propostas da sociedade civil organizada daquele país apresentam desafios muito similares aqueles a serem enfrentados no Brasil. No calor dos debates sobre o plano na África do Sul, uma coalizão de entidades civis apresentou um guia detalhado de metas a serem alcançadas, tendo em vista os seguintes objetivos gerais:

Maximizar a infraestrura de fibra óptica e rádio digital em áreas rurais e urbanas de forma equitativa e ambientalmente responsável;

Estimular a criação de conteúdo digital por provedores de conteúdo e de cidadãos, a fim de aproveitar o potencial da banda larga universalizada;

Aprofundar o e-Gov e a e-cidadania em um ambiente de banda larga universalizada;

Acelerar a adoção e uso de conexões avançadas de banda larga, para que o potencial das tecnologias de informação e comunicação (TICs) para aprendizado e ensino seja plenamente realizado.

O guia inclui 27 objetivos distribuídos nas seguintes quatro categorias: i) acesso à infraestrutura; ii) conteúdo, aplicações e serviços; iii) objetivos de e-governança e e-cidadania; iv) objetivos de educação e aprendizado. A coalizão acredita que o plano sulafricano poderá, em 2014, ser realizado de acordo com as seguintes premissas: assegurar a universalização da banda larga em todas as cidades e vilas; ter o menor custo para o usuário final em todo o continente africano; e tornar a África do Sul o primeiro país em penetração de banda larga de qualidade no continente.

O plano brasileiro tem certas peculiaridades que, em tese, facilitam de modo significativo pelo menos a realização do componente de infraestrutura. O PNBL poderá inserir uma empresa estatal como operadora de uma grande infraestrutura de mais de 30 mil km de fibras ópticas (na quase totalidade já instalada) que, estendida com ramos de rádio digital de alta velocidade, deverá alcançar cerca de 4.200 municípios (mais de 80% da população). Nessa perspectiva, o plano deverá levar em conta algumas metas estratégicas para o desenvolvimento do país, tais como:

Contribuir para aprofundar a qualidade, eficácia e alcance dos sistemas de e-Gov (considerando todo o serviço público), em todos os níveis;

Em particular, garantir conectividade de qualidade ao melhor benefício/custo possível a todo o sistema público de educação, saúde e segurança em todos os seus níveis;

Assegurar conectividade de qualidade ao melhor benefício/custo possível a todas as famílias em seus domicílios, sem exceção;

Assegurar trânsito Internet isonômico aos pontos de presença das espinhas dorsais da Internet, em todos os municípios, ao melhor benefício/custo possível para empreendedores locais, iniciativas de provimento local de serviços Internet, redes municipais e similares.

Garantir que a infraestrutura seja implementada com a visão de ser “à prova de futuro” (future-proof) – como, em especial, a infraestrutura física baseada em fibra óptica; no caso do programa australiano, a meta é levar fibra a todos os lares e escritórios, enfatizando essa visão.

O PNBL cria a oportunidade para definir legalmente o acesso à Internet no último quilômetro como um serviço a ser prestado em regime público. Há, no entanto, vários desafios para se concretizar essa definição. Um deles é como caracterizar o regime público sem restringir as oportunidades de prestação de serviços de conexão e de transporte de pequenos empreendedores locais, comerciais ou não.

De fato, o PNBL contempla uma estreita parceria com esses serviços locais de acesso, e deverá estimular o surgimento de novos empreendimentos ao reduzir o custo do componente que mais pesa nas despesas dessas iniciativas de menor escala – o preço exorbitante (mantido por quatro grandes operadoras) do trânsito Internet no Brasil. Essa parceria é crucial para realizar a missão central do PNBL: conexão permanente de boa qualidade para uso de todos os serviços Internet em todos os domicílios brasileiros.

Outro desafio é a definição precisa do que é o serviço de “banda larga” a ser categorizado em um possível regime público. Há um consenso de que a meta é universalizar acesso às espinhas dorsais, com velocidade e qualidade de serviço suficientes para se permitir plena experiência de uso de todos os recursos e serviços da Internet. Hoje, isso significa uma banda de trânsito com a Internet de pelo menos 1 Mb/s na descida (download) e 256 kb/s na subida (upload), e esses valores tendem a continuar crescendo com o desenvolvimento e a progressiva sofisticação dos serviços na rede. Portanto, a definição desse regime público terá que assegurar infraestrutura de trânsito no último quilômetro de tal modo que os investimentos atuais possam ser aproveitados em grande medida com o aumento da demanda por velocidades cada vez maiores por parte do usuário na ponta.

A regulação do possível regime público terá que assegurar qualidade de serviço (QoS), pelo menos em dois aspectos essenciais:

  • Banda real entre o terminal do usuário e o enlace da espinha dorsal de trânsito com a Internet, com garantia permanente de manutenção das velocidades asseguradas em contrato;
  • Não interferência no tráfego de pacotes entre o usuário final e a Internet por parte de qualquer dos fornecedores de conectividade e de transporte de dados nesse tráfego.

Um objetivo comum aos planos dos vários países já citados é o acesso de qualidade para uso pleno das facilidades da Internet em todos os seus aspectos, a fim de acompanhar o desenvolvimento dessas facilidades conforme a evolução da Internet. “Soluções” defendidas por setores empresariais, como a conectividade via celular para as camadas de menor renda, estão longe de permitir a plena realização da experiência do usuário; no Brasil, elas têm um preço tão elevado que inviabilizam o acesso limitado que um celular hoje permite para a maioria das famílias. Além disso, a rede móvel de melhor desempenho existe somente em algumas áreas das grandes cidades.

Pregar o celular de hoje aos preços exorbitantes aqui praticados, como alternativa, é sugerir que os usuários da Internet estejam em duas castas, de acordo com seu poder de barganha por serviços de qualidade, e aprofundar o sistema desigual já existente entre celular pospago e prepago. Não se pode comparar o executivo que usa um smartphone como complemento de seu laptop ou computador de mesa, que tem recursos para pagar a alta conta de um serviço 3G, com um trabalhador usando um celular prepago a um preço muito alto por minuto. No entanto, não se deve excluir do plano a utilização da rede de telefonia celular, bem como conexões via satélite, para conexão e tráfego de dados em locais em que não haja alternativas viáveis em curto prazo.

O PNBL deverá pressionar para baixo os preços de trânsito atualmente praticados pelas operadoras privadas – um dos mais altos do mundo. A democratização do acesso passa necessariamente por uma melhora drástica da relação benefício/custo para o usuário final. É possível demonstrar que os preços praticados no Brasil são tão altos em relação a preços de serviços similares na Europa, por exemplo, que a simples redução dos impostos e taxas não fará diferença significativa, especialmente para as famílias de menor renda. Os preços praticados hoje em São Paulo para o usuário final, por exemplo, podem ser dezenas de vezes mais altos que na Europa.

É importante destacar ainda que a rede a ser operada por uma empresa estatal deve ser uma referência mundial quanto à qualidade de serviço e à neutralidade/isonomia no acesso e no transporte de dados, respeitando o princípio de que os conteúdos são de responsabilidade de quem os gera e não de quem os transporta.

É essencial que o PNBL seja acompanhado de medidas de regulação que efetivem em curto prazo a desagregação estrutural das redes de telecomunicações – um assunto que vem sendo tratado pela Anatel há alguns anos. Só a desagregação (unbundling) estrutural permitirá, especialmente no território hoje dominado pelas principais operadoras de telecomunicações, o surgimento de provedores alternativos de serviços de conexão e de transporte em banda larga usando a infraestrutura física em mãos dessas operadoras. É a desagregação, em várias formas, que tem contribuído decisivamente para a significativa redução de custos, maior universalização e grande melhora de qualidade de serviço nas redes européias, além de ser também papel da Anatel garantir reserva de espectro para aplicações comunitárias e para os serviços de rádio digital que complementarão a espinha dorsal do programa.

A estratégia do plano envolve ainda a definição do espaço de regulação (ou de limites à regulação) de todas as camadas de Internet acima da infraestrutura física de telecomunicações – conexão lógica, endereçamento, roteamento e transporte de dados, bem como armazenagem e gerência de conteúdos e de seus aplicativos. Devem-se levar em conta os princípios e as recomendações do CGI.br, para não confundir com a estrutura regulatória de telecomunicações. Um dos cenários é ao CGI.br ser atribuído por lei ou decreto um mandato regulatório formal nas camadas de conexão, endereçamento e transporte de dados via Internet.

De qualquer modo, o PNBL deve considerar a banda larga como infraestrutura essencial, nos moldes de outros serviços essenciais como eletricidade, água e esgoto. A banda larga, em outras palavras, deve ser concebida como um direito do cidadão, tal como formalizado pela Finlândia.

O PNBL deve ainda levar em conta um plano de formação em grande escala (possivelmente integrado à rede de escolas técnicas federais, com o apoio de universidades) para empreendedores e usuários, envolvendo também os milhares de telecentros comunitários e iniciativas similares em âmbito nacional.

Tal como proposto até a data deste texto, o PNBL não ameaça diretamente o espaço empresarial conquistado com a privatização e os contratos de concessão recentes – apenas efetiva as alternativas, em particular nos territórios onde as empresas privadas não operam serviços de qualidade (ou não operam nenhum serviço), tendo como marcos a eficácia e a melhor relação benefício/custo do ponto de vista do usuário final, não do lucro. Essa ação certamente terá reflexos nas práticas atuais do setor privado, ao provar que é possível democratizar trânsito Internet de qualidade a preços que qualquer família brasileira poderá pagar e qualquer pequeno empreendedor poderá suportar.

Hoje, 30% dos domicílios no Brasil possuem computador de mesa e cerca de 66% dos que têm acesso à Internet o fazem via uma conexão de banda larga. Todavia, o total de conexões de banda larga no país é de apenas 11,1 milhões (final de 2009), ou 5,8% da população brasileira. Há, portanto um longo caminho a se percorrer para a efetiva universalização.

É muito difícil prever qual a banda necessária na ponta do usuário daqui a 10 anos. O fato é que os serviços Internet evoluem rapidamente para multimeios, requerendo cada vez mais banda. Em breve, a TV via Internet será inteiramente em alta definição. Como já dito, a tecnologia até agora conhecida à prova de futuro é a fibra óptica – o PNBL poderia considerar que, a longo prazo (mais ou menos em 10 anos) todos os domicílios terão conexão de fibra. Os planos mais abrangentes de banda larga hoje (o da Austrália e o dos EUA) propõem que todos os domicílios tenham pelo menos 100 Mb/s de banda efetiva em 2020. A Austrália vai mais longe, prometendo que a banda será via fibra óptica em todos os domicílios. Os EUA, além da banda a 100 Mb/s universalizada, especificam 1 Gb/s em todas as escolas, hospitais e centros militares, entre outros.

Por fim, em termos de estratégias de desenvolvimento, devemos lembrar que o Brasil hoje, mais do que ser considerado “emergente”, precisa-se comparar às outras nove maiores economias do mundo, já que a perspectiva é que esteja, em breve, entre as cinco maiores. Deve, portanto, orientar os parâmetros de sucesso (alcance, qualidade, universalidade, consistência a longo prazo, entre outros), tendo como referência esses outros nove países. Isso vale para todos os outros setores do desenvolvimento humano sustentável brasileiro.

Como citar este artigo:
AFONSO, Carlos A. Que banda larga queremos? In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2009 . São Paulo, 2010, pp. 65-72.