Participação e Presença na Rede

tipo: Documentos
publicado em: 29 de maio de 2007
por: Demi Getschko
idiomas:
Demi Getschko* - 29 de maio de 2007
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2006

A última versão da pesquisa sobre o uso da Internet no Brasil, a TIC Domicílios 2006, a par de muitos resultados interessantes, mostra que a rede é reconhecida como ferramenta de educação . E esse reconhecimento não está restrito aos grandes centros, onde o uso da internet já é corriqueiro e onde há infra-estrutura de porte adequado mas, e especialmente, nos remotos rincões do país. O que a primeira vista pode surpreender, mostra-se bastante compreensível se examinado com um pouco mais de cuidado. Afinal, uma das principais características que a rede apresenta é sua crescente, quase infindável, carga de informação, e a possibilidade dessa informação fluir entre dois pontos quaisquer, a custo baixo, mesmo que com infra-estrutura precária. Mais do que isso, no primeiro contacto com a rede, a impressão que o iniciante tem é a de ter encontrado um recurso altamente poderoso de informação e de instrução. Só num segundo momento começa a ser notado seu poder quase ilimitado de comunicação e, numa fase ainda mais avançada, a possibilidade de usá-la para expressão própria de idéias, de manifestações e de posicionamento. Assim, o verdadeiro poder que a rede traz ao indivíduo apenas começa a ser notado numa fase de uso mais avançada, tanto em termos de conhecimento da rede, como do uso de recursos tecnológicos de maior envergadura.

Não vamos nos deter para examinar a importante questão de como incluir um maior número de brasileiros na rede, e com qualidade e tecnologia adequadas, mas podemos examinar um pouco melhor alguns conceitos que passam despercebidos no diaa- dia. Um deles, como visto, é o uso da rede como ferramenta de educação e, no caso, de educação à distância. É usual considerar a educação à distância como uma tendência evolutiva da educação presencial, clássica: com a rede, é natural a elisão da distância e do tempo quando tratamos da transmissão de informações. Porém, mais do que trocar a forma tradicional de educação pela nova forma, o que se percebe é que em locais fisicamente remotos, a educação à distância pode ser a ferramenta de escolha para uma instrução complementar, que não tem outra forma de ser disponibilizada aos que estão distantes dos centros desenvolvidos. Trata-se assim, não da substituição da educação tradicional pela educação à distância, mas de usar a rede como forma de prover uma continuidade dos processos de educação a quem, sem essa opção, teria que encerrar seus estudos com um ciclo básico que, quando muito, alfabetiza o indivíduo.

É nesse ponto da conversa que entra o conceito que gostaríamos de examinar mais atentamente: que controle temos ou queremos ter sobre quem acessa a rede, quem participa dela? Se inclusão é um resultado pretendido e auto-educação uma possibilidade desejável de valorização do indivíduo, aumentar a barreira de entrada - já naturalmente mais alta do que gostaríamos - aos que querem se beneficiar da rede é, claramente, contraproducente. E quanto ao controle sobre quem gerencia transações, gera conteúdos, atua sobre a rede? Haveria necessidade de algum tipo adicional de informação sobre os que atuam na rede, os que têm presença na rede? Achamos que há diferenças essenciais entre da rede e ter presença nela, e que essas diferenças são importantes e não deveriam ser menosprezadas. Mais que isso, achamos que o caráter da Intenet, que pode ser resumido na frase de Jon Postel: "sejamos liberais no que aceitamos e conservadores no que fazemos" , tem se expressado com bastante clareza em seus processos técnicos de elaboração de padrões e de boas práticas e, por felicidade, se mantido vivo durante as últimas décadas. A rede é uma construção coletiva que não pressupõe barreiras ou controles. Não tem porteiras, nem cancelas, nem guardas. Quem tiver ao seu alcance os meios necessários para conectar-se, deve ser estimulado a fazê-lo na forma que conseguir. É um participante da rede, tal como o é o transeunte da praça pública, o banhista do rio fresco, o viajante do panorama que se desdobra ante ele. Por outro lado, quem tem recursos a si alocados na rede - presença na rede - tem maior poder de ação sobre esta e sobre os seus participantes e, desta forma, mais responsabilidades que os que dela apenas usufruem como visitantes, ávidos leitores de informação ou meros expectadores. Quem mantém um domínio na rede para, a partir dele, criar seu sítio onde vai expor informações e serviços, quem tem um conjunto de números IP a ele atribuídos para a identificação de equipamentos ou a prestação de serviços à rede, esses têm responsabilidades específicas perante a comunidade.

Se utilizarmos o exemplo da educação à distância para ilustrarmos essa diferença, participantes da rede seriam os internautas que buscam a rede para informação, educação e quaisquer outros serviços. Estes valem-se de um bem de utilidade pública irrestrito e aberto - a rede - para atingir seu objetivo. Já os que geram ou oferecem esses serviços, até pelas conseqüências de sua decisão de serem "detentores" de recursos da rede, deveriam por opção própria identificar-se perante a comunidade. É claro que entre estes dois pontos do espectro cabe uma longa e complexa discussão sobre transparência, responsabilidade, privacidade e direitos, mas também é claro que há que se tratar diferentemente coisas que são diferentes em essência.

Uma objeção que poderia ser levantada é: ...mas, os internautas que apenas participam da rede, também não podem causar danos a outrem? E não deveriam responder por isso? A resposta simples é que, claramente, somos todos responsáveis por nossos atos. Não há que se misturar responsabilidade por atos praticados com controles a priori , que restrinjam acesso, aumentem barreiras ou inibam comportamentos, numa estranha hipótese de "risco potencial". Afinal, aumentar o ônus dos que certamente merecem a pressunção de inocência, em nome de uma duvidosa segurança adicional é, certamente, buscar formas cômodas de diluir responsabilidades e de repassar culpas. Não pode o mero navegante da rede ser considerado potencialmente perigoso a ponto de se pensar em identificá-lo ou solicitar-lhe informações para "franquear" o direito de participar da rede e valer-se de suas riquezas. Entretanto, o internauta só poderá agir na rede se usar os recursos que são colocados à sua disposição pelos que tem presença na rede - os "detentores de recursos Internet". Se as normas de boa conduta já ditam que esses detentores de recursos devem manter dados em relação à data e hora em que recursos foram alocados a alguém, a partir desses dados e arquivos armazenados nos prestadores de serviço , sempre será possível rastrear eventos, identificar delitos e chegar aos verdadeiros causadores do problema que se quer sanar. Não parece correto, razoável e nem eficiente criar mecanismos que, de alguma forma, dificultem a entrada aos que buscam a rede como fonte de informação e de educação. Seria caminhar na contramão do que se procura conseguir, desmerecer o valor de se conectar ao mundo e ignorar toda a riqueza que a rede pode trazer aos que hoje estão ao largo dela.

Disseminar boas práticas entre provedores de serviço, como preservar os registros de entrada e saída de seus usuários e manter disponível publicamente e a todos a identificação dos geradores "oficiais" dos recursos que serão utilizados pelos internautas, parece suficiente para que a rede cresça saudavelmente. E, aliás, é o que tem sido historicamente praticado na Internet - e o que rezam um sem-número de RFCs 1 . A rede dá o poder de expressão a todos os que dela participam e, logicamente, todos nós podemos mandar e receber correio eletrônico, participar de discussões e painéis na rede, termos nossas páginas e nossos "blogs". Isso, entretanto, não caracteriza uma "presença" na rede, segundo o conceito que estamos defendendo neste texto. Em outras palavras, não devemos interpor a quem quer participar da rede nenhum obstáculo novo ou específico. Pelo contrário, temos que estimular a participação, mesmo que inicialmente tímida, do maior número possível de internautas. Em caso de necessidade, a partir dos identificadores característicos da Internet (nomes domínios e números IP), sempre poderemos coibir os delitos porventura cometidos e identificar seus autores. Por outro lado, e naturalmente, os que implementam serviços e transações na rede podem e devem proteger suas atividades, exigindo identificação de seus parceiros e clientes. Assim como no mundo real pode (e, eventualmente, deve ) haver controle de acesso a um clube privado, a um banco ou mesmo a um prédio, os sítios equivalentes a tais serviços na rede devem zelar pela segurança dos usuários e das transações que lá ocorram. Mas andar na rua, ir à praça, procurar se instruir, ler os jornais da banca, ou ver a paisagem, tanto na internet como no mundo real, são ações livres, desobstruídas e abertas a todos da forma mais ampla possível. Defender a liberdade passa por preservar o livre acesso à internet, ajudando a fortalecer uma das características mais importantes da rede e um dos valores mais caros à nova forma de conviver que ela nos proporciona.


1 - Request for Comments (RFC) é um documento que descreve os padrões da Internet, dissemina informações importantes ou descreve boas normas de conduta na rede.

* Demi Getschko, Diretor-Presidente do NIC.br.

Como citar este artigo:
GETSCHKO, Demi. Participação e Presença na Rede. In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2006 . São Paulo, 2007, pp. 35-37.